quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Lectio perpetua

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Aqui o tempo não passa. Ali, ao Campo Grande, que se tornou pequeno para o caudal de trânsito e a quem os prédios, altos, roubaram a réstia de bucolismo.

Lá dentro, a frieza dos mármores do Estado que então se dizia novo, as alegorias do passado, o ressoar vazio dos passos, as mesmas lombadas gastas, tudo imutável. Dir-nos-íamos na década de 70, quando a patine que se respira era o cheiro orgulhoso da novidade que não se estreara ainda. Desde aí, só lhe mudou o nome. Foi de Lisboa, agora é portuguesa, mas sempre nacional.

A imponência, se existe, é forçada. Não tem a graciosidade e a leveza férrea da velha Bibliothèque Nationale, a solenidade esmagadora das estantes do Congresso ou a transparência luminosa da British Library. Só os traços severos de um modernismo já idoso.

Na sala, onde se lê, impera o silêncio monástico que transportou consigo desde os tempos do convento de São Francisco. Só o zumbido dos computadores, o bater das teclas que triunfou sobre o correr da pena, quebram a tranquilidade do espaço. Ao fundo, na Leitura Nova desbotada, permanecem as personagens, sempre as mesmas, mudas, tão mudas como os que efemeramente se sentam diante delas.

Falta a luz. A luz que as persianas insistem em ocultar, que permanece retida lá fora. Como se alguém nos mantivesse de castigo, como se faz com crianças a quem se diz «todos para parede e nada de brincadeiras». O silêncio triste é tradição. Mas a penumbra, o ar pesado, o mesmo mofo irrespirável, mais da sisudez dos homens que da velhice dos livros, tudo remete para uma penitência, como se ler, se pousar os olhos num grão de algum saber, fosse uma punição. Não é. Triste é haver quem diga que sim.

O que falta a muitos, se não a todos, é a vontade de ser e, sobretudo, de pensar. Pensar?! Para quê? Agora é tão fácil viver simplesmente porque sim e por nada. A este propósito, podia citar Descartes. Falta também, a cada um de nós, vontade de ver, de conhecer e de saber. Aqui podia encaixar Sócrates, o filósofo, entenda-se. Mas não. Basta dizer que existo, que penso e que percebo, a cada dia passado, que nada saberei.

2 comentários:

TiagoLouriçal disse...

Eu dormia sossegado se lesse um comentário pouco gracioso ao antigo Estado Novo de gloriosa memória, mas verdade seja dita estes reparos a um exemplar solene da denominada arquitectura fascista são profundamente injustos e deixaram-me as vísceras em palpitações. Parece-me desnecessário recorrer ao argumento mais que óbvio que na herdeira da Real, da Alegrete, da Pombalina etc etc..... estão depositados alguns dos mais preciosos códices do mundo.
Discussão estética do que é indiscutivelmente notável e que em nada desmerece o seu conteúdo é comentário de quem diz mal por dizer e isso é coisa de quê....? De comunista.
A Biblioteca Nacional não é um recreio para os meninos brincarem onde muitos se entregam ao OTIUM CUM DIGNATATE. Ler não é punição mas ambos sabemos que nem todos deviam ter essa faculdade para evitar males maiores que já se têm visto suceder... bonito bonito eram os tempos em que se cozinhavam as eleições e tal como o Conde de Ficalho um dia disse, “manda quem paga e o resto são histórias”.
E que tal direccionar a língua cheia de veneno que vai deixando rasto quando passas, para a falta de funcionários competentes e para a má gestão financeira das aquisições feitas pela B.N. em leilões onde se perdem milhares de euros a encher a B.N. com lixo da Osório de Castro e toda a sorte de pessoas desviadas deixando para trás documentos preciosos com o argumento de que deve ser o Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo a adquirir?
Não podia deixar de salientar o seguinte reparo:
“O que falta a muitos, se não a todos, é a vontade de ser e, sobretudo, de pensar. Pensar?! Para quê? Agora é tão fácil viver simplesmente porque sim e por nada.”
Pensar??? As massas não pensam, jogam futebol, por muito que se queira fazer crer que isto é um país de eruditos ambos sabemos que não é nem será e não é por falta de acesso a livros.

Marie disse...

Estou totalmente de acordo com o Hugo, aquela biblioteca é horrível cheia de pessoas sisudas e antipáticas! Dou-lhe os meus parabéns Hugo pois não podia ter descrito a Biblioteca Nacional de melhor forma.