Tinha uma mercearia, na Baixa, entalada entre um sapateiro e uma loja de modas.
Alice não lhe largava a casa. Aviava-se todos os dias, antes de subir ao seu terceiro andar nos Fanqueiros, vinda do ministério onde secretariava o dia inteiro. O fiambre, o grão, o leite ou o sabão davam-lhe o mote para dois dedos de conversa e uns tostões deixados na loja.
Ontem mesmo, vira desfilar na calçada cravos vermelhos. Depois, ouvira dizer que o regime mudara. Hoje, ouvia logo da soleira da porta os lamentos da cliente, esfalfada pela balbúrdia da liberdade. A ela ninguém podia apontar o dedo. Mas vira coisas, lá isso vira, a queima de papéis, gavetas revolvidas, gente corrida a pontapé das repartições. Temia pelo emprego, pelo sustento, e não via o caso com bons olhos.
Já ele, o da venda, sacudia os ombros com desprezo. Assim ou assado, tinham todos de comer. Não se lhe fraquejava o negócio só porque os cabeçalhos dos papéis do governo mudavam. O diabo era a Matilde, a velha avarenta, que lhe levara um bacalhau fiado quarta-feira e na sexta ainda não o pagara.
Os hábitos não se mudavam de um dia para o outro. Quanto ao resto, sempre fora assim. Rei morto, rei posto.
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