quinta-feira, 8 de abril de 2010

Cidade etérea

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Um autocarro vermelho de dois andares, perdido no mar de trânsito, com o Big Ben ao fundo. É Londres, claro.

Quase não se sabe é que em Lisboa também circularam autocarros semelhantes às célebres viaturas londrinas. Pois é. Verdinhos, com dois pisos, eles faziam várias carreiras pela cidade. Haverá pouca gente a recordar-se deles. Não tanto pelo tempo em que deixaram de servir mas mais por aquela renovação constante que se faz da memória.

Diluem-se, diante da imagem do presente, as lembranças do quotidiano gradualmente transformado, com tantos vagares que as mudanças, longe de serem súbitas, apenas se percebem em certas comparações que revolvem a infância quase esquecida ou a adolescência irreverente e nostálgica.

A cidade perde-se no correr do dia-a-dia. A de hoje está longe de se assemelhar à da década de 60 ou 70. Onde estão os autocarros verdes? Os velhos torniquetes do metropolitano, as paredes sujas onde se pintavam propagandas da Revolução ou o vasto estacionamento do Terreiro do Paço? Para melhor ou pior, o certo é que a cidade mudou.

A fotografia é dessa metamorfose apenas um testemunho ténue. Se a uns serve de alavanca, pondo a rolar a engrenagem da imaginação, da tentativa vã de reconstituir uma época que não se viveu, para outros é um interruptor que acende as lembranças que a pouco e pouco se foram empurrando para um canto escuro da memória.

A urbe, como alguém que envelhece, transforma-se em tornos dos traços fixos que lhe dão carácter. A fisionomia, reconhecível, vai sofrendo os ajustes que o tempo lhe confere. De São Pedro de Alcântara hão-de avistar-se as sete colinas da tradição, o castelo, sereno e dominador, no alto do seu monte, as ameias da Sé esticando-se por entre o casario e as ruelas tortuosas de Alfama, o risco azul do Tejo rematado no horizonte pela Arrábida. Mas em baixo, no formigueiro de gente e no amontoado de telhados que se espraia como um lençol ondulado, mudam-se gentes e fachadas.

Uma Lisboa de anos longínquos existe apenas dentro de cada um que a conheceu. Por isso, hoje, observemos todos os nadas que lhe dão essência e vida e que lhe escrevem a história, e perpetuemos uma imagem que em breve se desmaterializará. E um dia, ainda distante, quando recuperarmos a lembrança vaga e enevoada da cidade de hoje, perceberemos que, na subtileza da mudança, quase incompreensível, passou uma vida inteira.

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