Tinham casado num Maio soalheiro, na Basílica da Estrela. Foi o primeiro passo numa vida que confundia tranquilidade e monotonia. Ele era director num ministério, ela zelava pelo aprumo doméstico.
De manhã, esmerava-se nos preparos das crianças para o colégio. Depois, gastava os dias a cirandar por mercados e boutiques, nas visitas à tia acamada e nas ordens à criada de fora. Ele, terminado o desjejum, sumia-se na aridez do Terreiro do Paço. Regressava sempre à mesma hora e os contratempos tornavam-no irascível. À noite, a leitura e a telefonia reuniam a família na sala de estar.
Nas tardes de sábado, ela punha uma jóia da mãe, esmerava-se na maquilhagem e peregrinava à Versailles ou à Confeitaria, onde as amigas a esperavam. Ele ia à noite ao Clube, gozando os charutos e o brandy. Às vezes, contrariando os hábitos, distraíam-se num cinema ou desciam a Avenida para se revistarem no Parque Mayer.
Mesmo quando o programa de fim-de-semana se alongava até horas mais tardias, era inevitável assistir ao serviço religioso de domingo. Ela punha um véu de renda preta, alisava a gravata do marido, apertava o colarinho do rapaz e compunha o vestido da pequena. Solenes, batendo os tacões, desciam até Londres, à praça, papagueando a missa em São João de Deus.
Nas férias e festas subiam até Ponte de Lima, a rever os primos e a repousar corpo e alma na beleza nostálgica do velho solar fidalgo. Para lá da fronteira, a Europa recompunha-se da guerra. Só conheciam Paris, Londres e Roma. O resto, dizia ele, não era do mundo civilizado. Ela sonhava com a doçura tropical do Brasil. Restou-lhe o pesadelo de nunca lá ter ido. Isso era sítio para emigrantes, sentenciava o marido.
Amavam-se. Mas um amor que não nascia daquele misto de paixão e de coisa que não se explica, e sim da tolerância, da complacência e do consolo de um ombro terno. Amavam os filhos. E imaginavam para eles, naquela ingenuidade dos afectos parentais, um futuro sereno, tão sereno como o presente que tinham. Os desenganos viriam depois. O futuro também.
Assunção e Caetano são dois nomes sem rosto, onde há-de caber a alma de muitos. A alma daqueles que agora, envelhecidos, passeiam devagar, de olhar perdido e indiferente. O presente é um tempo que conhecem mal. Mas testemunham, como mais ninguém, um passado que duas ou três décadas de vida não permitem imaginar. Um passado bem mais português do que suave, resumido negligentemente a meia dúzia de clichés e ideias feitas. Um passado que se dissolve lentamente com as memórias. Um passado a preto e branco.
1 comentário:
Belíssimo texto, Hugo :)
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