quarta-feira, 3 de março de 2010

Amor à la carte

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Não era só porque chovia lá fora e um tremendo tédio se apoderara de si que lhe apetecia escrever. De resto, não era necessária motivação alguma para que uma folha de papel em branco e uma caneta despertassem nele uma vontade inadiável de escrever.

Um serão de domingo banal. O ritmo de uma véspera de segunda-feira, que o proletariado se acostumou a difamar com resignação. Procurou qualquer coisa que lhe servisse de argumento para meia dúzia de parágrafos. Mas só lhe chegavam os clichés, os transeuntes apressados na rua, os passeadores de cães, o trânsito tranquilo, enfim, todos aqueles ingredientes de uma história ela própria mais banal que o quotidiano de cada dia.

Depois o quê? Um amor platónico? Através da janela via, ao fundo, numa rua que se mostrava entre duas empenas de prédios mais elevados, uma janela misteriosa que aguçava a curiosidade. Quem lá poderia estar? Pareceu-lhe que descobrir o misterioso ocupante daquele espaço e apaixonar-se por ele soaria a coisa de novela, daquelas que vêm a correr, em grupos de três ou quatro, depois do noticiário da hora de jantar. Ah, e claro que para além disso, com esta coisa das tecnologias, bastaria certamente um mapa da cidade, uma foto de satélite e a lista telefónica para logo descobrir a personagem desconhecida da janela encantada.

Fraquejava-lhe a inspiração. Talvez fosse a fome… Pensava em jantar quando a ideia divina desceu sobre ele. Não, não se tratava de esmiuçar a Bíblia ou contradizer o Corão embora estivesse na moda fazê-lo e, diga-se, com uma certa graça e pertinência. Não. Trata-se apenas de um restaurante. Um jantar normal de família. Não… apimentemos a coisa e tornemo-lo num jantar entre duas pessoas que descobriram um no outro certas características que os atraíram mutuamente. Bom, sejamos realistas. Duas pessoas que se atraem fisicamente e que esperam, para manter um certo nível de decência, encontrar em si algo mais que dê consistência à coisa e sirva de desculpa para várias noites bem passadas.

Uma mulher. Um restaurante conhecido, gabado pela qualidade dos pratos, pelo ambiente simpático e pela elegância do espaço. Uma noite de Primavera que faz sentir lá fora a doçura do luar. Um empregado banal traz a lista, atreve-se a sugerir as entradas, serve as bebidas, o costumado ritual consuma-se. A conversa trivial para adiar o mote do jantar, o riso, a indiferença simulada, a música ambiente que convida à intimidade e à palavra pronunciada perto do rosto do outro. Mas, a pouco e pouco, o sabor dos pratos esbate a figura que tem diante de si. Já não o vê nem escuta. O aroma intenso, a estética do prato, as sensações indescritíveis que cada garfada lhe produz, fizeram-na esquecer tudo o resto e concentrar-se apenas numa ideia, numa satisfação de curiosidade, no desejo de uma pessoa. Quando a sobremesa se serviu, vinha acompanhada de uma paixão pelo chef.

1 comentário:

João G. disse...

Um texto, à la carte ou não, é sempre um amor que se espera nas palavras ainda paradas dentro de nós. Não só na acção se ama, também no resguardo da imaginação podemos encontrar por lá algum significado para as nossas vontades (de escrever).
Imaginar é amar o impossível, dentro de várias possibilidades.

Abraço Hugo,
bom blog.