quinta-feira, 11 de março de 2010

O sótão

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Aquela porta na cozinha sempre teve uma espécie de aura. Algo de simultaneamente respeitável e misterioso.
Quando se abria para nós, mostrava uma pequena escadinha de madeira que imediatamente curvava, ocultando o seu destino. Nos primeiros degraus, como que a anunciar o que se seguiria já se amontoava alguma tralha. Por isso, com medo de tropeçar nas coisas que por lá se encontravam, subíamos a diminuta escadaria de olhar atento. Depois de uma dúzia de degraus rangentes, chegávamos.

Ali era o sítio. O lugar. Era como um baú gigante, onde, no êxtase da curiosidade vasculhávamos tudo, em busca de coisa nenhuma.

O sótão dos avós ocupava a mesma área do piso inferior. Tínhamos portanto um vasto espaço para esquadrinhar, espreitar e gavetas parar remexer.
Foi lá onde tive o meu primeiro contacto com herói gaulês, que me acompanha quase desde que me lembro. Era uma edição já velha do Astérix e Cleópatra, a capa estava descolada do livro e as páginas amareladas pelo tempo. Ainda assim soube bem ler, talvez até mais do que qualquer outro livro da colecção. Os poucos discos de vinil que orgulhosamente guardo também de lá foram resgatados, tal como uma máquina fotográfica, ainda do tempo do Presidente do Conselho, que tenho esperanças de arranjar.

Os tesourinhos não acabavam. Desde roupas do século passado, a fotografias de jovens em fatos polidos, onde é possível reconhecer o sorriso e olhar dos avós. Uma mesa ou duas, a cama de infância da minha mãe, entre outros tantos móveis e estantes, todas elas cheias de revistas antigas, alguns livros e o bric-à-brac que a avó dispensara.
Havia também as aranhas. Essas mantinham as raparigas afastadas dos cantos mais obscuros, evitando sempre as teias quando patrulhávamos o sótão. Se algum aracnídeo se atravessasse à sua frente gritavam amedrontadas por alguém que fizesse o trabalho sujo, como se a sua vida corresse perigo, serviço esse que eu orgulhosamente executava num ápice, demonstrando a minha bravura de criança temerária.

Nunca mais vi uma aranha naquele lugar, provavelmente emigraram, revoltadas com chacina.
É curioso pensar que todos temos um sótão, seja do tio, da avó ou simplesmente o da nossa imaginação. O meu, hoje em dia, parece-me mais pequeno, menos valioso e empolgante. Ainda assim tem sempre a sua graça revisita-lo, descobrir mais uma ou outra coisa que na altura não dei valor. Sentir o seu ar abafado e o cheiro característico da madeira envelhecida. Olhar em volta e aperceber-me que ali tudo está igual e só uma pequena coisa mudou. Eu.

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