sábado, 19 de junho de 2010

Memorial

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Contar boas histórias é mister trabalhoso. Não basta converter em caracteres as ideias que a imaginação fabricou, é necessário dar-lhes a mesma alma e vivacidade com que habitam o nosso interior.

Com isto de os jornalistas escreverem romances em vez de notícias, tornou-se banal romancear cruamente passados e presentes, polvilhados aqui e ali com parágrafos que querem atestar a pesquisa histórica feita pelo autor. Diz até que têm sucesso, que se lêem bem, que dão mesmo para adaptações no grande ou no pequeno écran. Caem no goto porque não fazem pensar. Dão para ler no metro ou numa sala de espera porque nenhuma frase merece ser lida duas vezes, seja pela ideia ou pela estética.

Em Saramago fundiam-se ambos os prazeres. As histórias eram boas, bem envolvidas pela escrita afastada dos espartilhos da gramática, que a mente também não conhece. Talvez por isso, os diálogos, completamente diluídos nas frases vastas como o oceano, pareciam mais vívidos que nunca, com tanta emoção nas palavras escritas como naquelas que as personagens pronunciassem. Depois a ideia, a fluidez da páginas que correm num fio contínuo até ao final em que a história se dilui suavemente. Primeiro estranhou-se, depois entranhou-se.

Resta agora a obra de meio século e a marca que a sua morte deixa por cá, na árida placidez de Lanzarote ou no confuso país onde a terra acaba e o mar começa. O vazio que Saramago abre, esse, permanecerá. Como ele próprio disse n’A Caverna. Mesmo que o tempo tudo cure, não vivemos o bastante para tirar-lhe a prova.

2 comentários:

Jules disse...

Belíssimo memorial :)
e gostei do apontamento acerca dos jornalistas-romancistas eheh

MC disse...

gostei muito deste memorial. Passei muitas boas horas a ler algumas das suas obras, sem dúvida algo que não vou perder o hábito de fazer.

Adoro a inspiração de verão "belvedere"!