sábado, 15 de maio de 2010

Ao serão

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Apeteceu-lhe escrever, sentar-se e ligar o pequeno candeeiro que exalava uma luz quente e difusa pelo amontoado de papéis e livros espalhados no tampo da secretária. Lá fora, sentia do outro lado da janela, já cerrada e escondida sob os reposteiros de veludo, a nudez da noite, gélida e muito limpa, cortante com o seu frio atroz. Não ligou o aquecedor. Em vez disso, embrulhou-se num casaco velho, grosso e coçado, e afundou o pescoço num cachecol de lã. A casa, sonolenta, envolta pela fraca luz que passava para o corredor pela bandeira de vidro aos quadradinhos sobre a porta, estava deserta. O gato dormia a um canto, enroscado no cestinho de vime, que ele pusera perto do sofá de veludo verde, longe das frinchas das janelas por onde soprava uma aragem fininha que os rolos de esponja colocados rente ao soalho não conseguiam impedir de penetrar na sala.

Pegou na caneta, ergueu-a ainda um momento sobre o papel, muito limpo, muito branco, ainda sem alma. Mas não lhe saiu nada. Voltou a pousá-la e deixou a folha de papel, a que não dera vida, sobre a mesa. Arredou a cadeira, levantou-se, caminhou até uma das janelas. Afastou ligeiramente a pesada cortina e espreitou para baixo, para a rua, deserta àquela hora tardia. No passeio em frente, sob a luz amarelada dos candeeiros centenários, não passava ninguém. Uma vez por outra, no alcatrão, deslizava um táxi com a sua luzinha a indicar como estava livre, pronto a receber um transeunte congelado, arrependido de se ter lançado a pé na noite polar. E na correnteza de janelas, regulares e mudas, do palacete que ficava em frente, não se distinguia nenhuma claridade por detrás das portadas cerradas, onde ele imaginava as salas e os gabinetes vazios, despejados de gente, que findo o expediente se apressava a correr para perto das lareiras e aquecedores que tivesse em casa.

Uma sombra passou, recortando-se contra a claridade, muito negra, esguia, escondida num sobretudo de gola alta. Teve um arrepio, deixou cair o cortinado e reentrou no conforto que a sala, estofada, forrada e atapetada com abundância, lhe oferecia tranquilamente. Aproximou-se do canapé e, sentando-se vagarosamente, abriu o livro que deixara na mesinha de apoio onde, protegida pela vastidão do abat-jour, se aninhava uma colecção de pequenos frasquinhos de cristal.

Não terminara ainda a primeira página e logo a campainha retiniu, estridente e abrupta, quebrando o conchego dormente que a luz ténue fabricava. O gato acordou, sobressaltado, mas, certo do desinteresse do visitante, depressa se enroscou novamente cobrindo-se com a cauda felpuda. Ele permaneceu imóvel, o livro aberto no colo, a perna traçada, o braço apoiado no sofá.

A noite passou, e com ela quatro estações.

2 comentários:

MC disse...

impecável, super real. tenho a dizer que senti mesmo a campainha a tocar, mesmo estridente. estragou o momento todo!!

Hugo Franco d'Araújo disse...

Ainda bem que gostaste! Obrigado. beijinho!