Naquele
ano a primavera chegara mais cedo.
O
jardim, protegido por um robusto muro conventual das ruas buliçosas, recebia
desde o nascer do dia a aragem suave que vinha do rio. Por entre as copas e os
buxos avistavam-se os telhados amontoados pela encosta do castelo, como numa
medina islâmica.
Perto
do fontanário, onde a melodia da água punha um toque de suavidade aos ruídos
que trepavam pelo velho muro, dava-se a batalha. No saibro, o exército invasor
marchava, amontoando-se diante do parapeito do tanque. Em cima, os sitiados
tentavam proteger-se dos ataques desferidos por uma colher de pau, à laia de
catapulta, que fora desviada da cozinha.
As
crianças atarefavam-se em volta do cenário de guerra. Um dos rapazes, mais
desenvolto, cuja agitação transpirava dos seus movimentos enérgicos e
determinados, coordenava as manobras, dividia os soldados de madeira, impunham
ao irmão a pátria dos batalhões. Empoleirados na balaustrada, os seixos, à laia
de pequenos defensores, representavam os portugueses. E em baixo, rolando na
poeira, marchavam os castelhanos invasores. O jovenzito mais pacífico,
amedrontado, talvez iluminado pelo bom senso que o outro não tinha, preferia
não rotular assim, no ímpeto do assédio, os corpos beligerantes.
Ao fundo, sob a arcada que fechava o pátio,
uma anciã dormitava, naquele sono sobressaltado mas inevitável de avó que vigia
as brincadeiras infantis. Pardais e rouxinóis, amolecidos pela tarde
primaveril, cantavam tranquilamente empoleirados nos troncos, alheios à tragédia
humana que se desenrolava em baixo. O cenário, com tiques de idílio, foi
bruscamente interrompido pelos «viva Portugal» que ecoaram no jardim. Os
pássaros voaram, assustados. E a velha sonolenta, despertando lentamente da sua
vigília, estremeceu nas suas pálpebras semicerradas.
«Abaixo
el-rei das Espanhas!»
Era
uma guerra declarada à tranquilidade do dia. Francisco, embrenhado no cerco ao
castelo, nada ouvia já, perdido na imaginação que o fazia desviar-se das
pisadas fortes dos cavalos e dos golpes de espadas dos donzéis. O mais pequeno,
encolhido sob aquele grito de guerra, tremia muito, sem fugir, de olhos
esbugalhados pela audácia do mano.
O
vulto negro, depois de um ronco sonoro, ergueu-se na cadeira. Que era aquilo?
Não lhe respondiam. Tornou a perguntar, mas no campo de batalha nada se escutava.
E foram só os seus passos, arrastados sob o peso das décadas que, não sendo
muitas eram longas, a conseguir despertar o soldadinho irreverente.
«Que é
lá isso, menino? El-rei de Castela é el-rei nosso senhor! Ora, pode lá ouvir-se
semelhante insulto? Hem? Vai ao pai, que lhe diga das boas.»
E foi.
D. Manuel, para quem a bravura dos antepassados havia conseguido, mesmo que ele
mal tivesse pegado numa espada, o título de conde de Vila Bela, travava dia após
dia uma pesada batalha contra as sonolências que o invadiam no gabinete quando,
depois do almoço farto e bem regado, assentava praça na cadeira de oficial
régio. Foram dar com ele a meio da luta. O cotovelo escorregava-lhe pelo braço
do assento e o bigodinho, impecavelmente composto, esvoaçava a cada suspiro.
Quando
a velha ama contou ao seu senhor o que acontecera no pátio, uma sombra densa
passou-lhe pelo rosto. Ali estava um filho seu, um esboço de homem apenas
naqueles tenros anos. Mas despontava nele a força ingénua da juventude, a
sinceridade que os passar dos anos obrigava a mascarar.
Não o castigou. Ensaiou somente uma breve pregação acerca do respeito que era devido ao rei, fosse ele quem fosse. E, quando ambos o deixaram novamente no silêncio fresco da biblioteca, ficou entregue ao orgulho secreto de ver que as gerações vindouras da família prometiam sobrepor a convicção dos ideais à cobardia vergada das conveniências.
Não o castigou. Ensaiou somente uma breve pregação acerca do respeito que era devido ao rei, fosse ele quem fosse. E, quando ambos o deixaram novamente no silêncio fresco da biblioteca, ficou entregue ao orgulho secreto de ver que as gerações vindouras da família prometiam sobrepor a convicção dos ideais à cobardia vergada das conveniências.
Sem comentários:
Enviar um comentário