domingo, 11 de março de 2012

Soldadinhos de chumbo

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Naquele ano a primavera chegara mais cedo.

O jardim, protegido por um robusto muro conventual das ruas buliçosas, recebia desde o nascer do dia a aragem suave que vinha do rio. Por entre as copas e os buxos avistavam-se os telhados amontoados pela encosta do castelo, como numa medina islâmica.

Perto do fontanário, onde a melodia da água punha um toque de suavidade aos ruídos que trepavam pelo velho muro, dava-se a batalha. No saibro, o exército invasor marchava, amontoando-se diante do parapeito do tanque. Em cima, os sitiados tentavam proteger-se dos ataques desferidos por uma colher de pau, à laia de catapulta, que fora desviada da cozinha.

As crianças atarefavam-se em volta do cenário de guerra. Um dos rapazes, mais desenvolto, cuja agitação transpirava dos seus movimentos enérgicos e determinados, coordenava as manobras, dividia os soldados de madeira, impunham ao irmão a pátria dos batalhões. Empoleirados na balaustrada, os seixos, à laia de pequenos defensores, representavam os portugueses. E em baixo, rolando na poeira, marchavam os castelhanos invasores. O jovenzito mais pacífico, amedrontado, talvez iluminado pelo bom senso que o outro não tinha, preferia não rotular assim, no ímpeto do assédio, os corpos beligerantes.

Ao fundo, sob a arcada que fechava o pátio, uma anciã dormitava, naquele sono sobressaltado mas inevitável de avó que vigia as brincadeiras infantis. Pardais e rouxinóis, amolecidos pela tarde primaveril, cantavam tranquilamente empoleirados nos troncos, alheios à tragédia humana que se desenrolava em baixo. O cenário, com tiques de idílio, foi bruscamente interrompido pelos «viva Portugal» que ecoaram no jardim. Os pássaros voaram, assustados. E a velha sonolenta, despertando lentamente da sua vigília, estremeceu nas suas pálpebras semicerradas.

«Abaixo el-rei das Espanhas!»

Era uma guerra declarada à tranquilidade do dia. Francisco, embrenhado no cerco ao castelo, nada ouvia já, perdido na imaginação que o fazia desviar-se das pisadas fortes dos cavalos e dos golpes de espadas dos donzéis. O mais pequeno, encolhido sob aquele grito de guerra, tremia muito, sem fugir, de olhos esbugalhados pela audácia do mano.

O vulto negro, depois de um ronco sonoro, ergueu-se na cadeira. Que era aquilo? Não lhe respondiam. Tornou a perguntar, mas no campo de batalha nada se escutava. E foram só os seus passos, arrastados sob o peso das décadas que, não sendo muitas eram longas, a conseguir despertar o soldadinho irreverente.

«Que é lá isso, menino? El-rei de Castela é el-rei nosso senhor! Ora, pode lá ouvir-se semelhante insulto? Hem? Vai ao pai, que lhe diga das boas.»

E foi. D. Manuel, para quem a bravura dos antepassados havia conseguido, mesmo que ele mal tivesse pegado numa espada, o título de conde de Vila Bela, travava dia após dia uma pesada batalha contra as sonolências que o invadiam no gabinete quando, depois do almoço farto e bem regado, assentava praça na cadeira de oficial régio. Foram dar com ele a meio da luta. O cotovelo escorregava-lhe pelo braço do assento e o bigodinho, impecavelmente composto, esvoaçava a cada suspiro.

Quando a velha ama contou ao seu senhor o que acontecera no pátio, uma sombra densa passou-lhe pelo rosto. Ali estava um filho seu, um esboço de homem apenas naqueles tenros anos. Mas despontava nele a força ingénua da juventude, a sinceridade que os passar dos anos obrigava a mascarar.


Não o castigou. Ensaiou somente uma breve pregação acerca do respeito que era devido ao rei, fosse ele quem fosse. E, quando ambos o deixaram novamente no silêncio fresco da biblioteca, ficou entregue ao orgulho secreto de ver que as gerações vindouras da família prometiam sobrepor a convicção dos ideais à cobardia vergada das conveniências.