segunda-feira, 23 de maio de 2011

Não escute nem olhe

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Sentar-se ao volante e ir estrada fora enquanto se lê um romance, se come um gelado ou se observa tranquilamente a paisagem deve ser um cenário possível em menos tempo do que se possa supor.

As senhoras que, monocordicamente, vão indicando (qual anjo com pretensões de guia turístico) a direcção a seguir e a próxima viragem à direita não são já novidade e terão, sem dúvida, dado uma preciosa ajuda aos condutores que não querem perder tempo a desdobrar mapas e a seguir ondulantes linhas verdes ou vermelhas, duplas ou tracejadas que serpenteiam pelas enormes folhas dobradas em mil partes.

Também os sensores (que apitam de modo incansável e não menos paciente) salvaram muitos daqueles azelhas que só percebem ter abalroado o carro da frente quando já lhe destruíram o pára-choques traseiro, perderam os faróis e riscaram metade da pintura.

O surpreendente agora, embora a inovação se encaixe na mesma linha das anteriores, é o novo automóvel que reconhece antecipadamente os sinais de trânsito que sorrateiramente surgem diante dos olhos do condutor. Ou, pelo menos, deveriam surgir, já que agora qualquer boa alma com um volante nas mãos pode ralhar com as crianças irrequietas no assento de trás, fazer uma chamada à esposa com a habitual justificação do atraso para jantar ou ter uma violenta discussão com o condutor do carro ao lado (que desde o cruzamento anterior gesticula animadamente com o dedo médio através do retrovisor) sem ter de se preocupar com os avisos que lhe vão saindo ao caminho.

Afinal, quão inteligentes e autónomos se tornarão os carros do futuro? Dispensarão um condutor, accionados apenas por uma voz de comando como se de um taxista se tratasse? Iremos ver o Ambrósio do intemporal anúncio de bombons substituído por um leitor digital dos desejos da senhora de capeline amarela? Quem felicitará ela com o seu «bravo» se não existe ninguém a ocupar o assento dianteiro?

Tratar-se-ão estes auxiliares de uma ferramenta mais que assegure a segurança de condutores e passageiros ou, ao contrário, contribuiem para que cada vez mais o homem se demita do uso das suas próprias capacidades? Claro que as falhas são inevitáveis, mas até onde irá a aparente relação entre o desenvolvimento tecnológico nascido da mente humana e a consequente (e paradoxal) substituição da sua acção pela intervenção de dispositivos artificiais?

Veremos. Até lá, no ensejo de uma resposta satisfatória, aguardo que a cadeira onde me sento me leve à cozinha onde o fogão, seguindo o menu que ele próprio escolheu, confecciona preciosos jantares, com todo o amor e carinho que as suas quatro bocas lhe permitem.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Praça das Flores & (boa) Cia.

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quarta-feira, 11 de maio de 2011

Entregues aos bichos

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Se bem que o assunto já fosse sendo comentando aqui e ali, as saborosas notícias de um auxílio externo à falida Lusitânia puseram-no ainda mais na ordem do dia. As incontáveis freguesias (que é como quem diz para cima de quatro mil) às quais normalmente o freguês nem se lembra que pertence, devem passar entretanto por uma merecida reorganização.

Mas desengane-se quem julga que as juntas de freguesia estão agonizantes e inactivas. A provar o contrário, uma delas (que prefiro manter no anonimato, mais pelo medo de represálias do que pelo sigilo da minha morada) publica um boletim quadrimestral com suculentas notícias (seguindo a linha de adjectivação com que iniciei o texto) relativas ao pedacinho de cidade sob a sua jurisdição.

Numa espécie de governo totalitário, a senhora presidente (ou presidenta, se a Dilma fosse portuguesa) detém um admirável rol de pelouros, alguns redundantes, entre os quais se contam a «Saúde», «Habitação e Urbanismo», «Mobilidade» e (era aqui que eu queria chegar) o dos «Canídeos e Gatídeos».

Ora, ignorando até o curioso termo gatídeo aplicado às bolas de pêlo e bigodes que circulam em quatro patas, não deixa de ser relevante a atenção dada a estas duas espécies em particular. Certo é que, recebendo os sem-abrigo humanos uma reconfortante refeição e um cobertor de gente a quem o infortúnio do próximo ainda causa alguma inquietação interior, o mesmo não se passará com todos os gatos e cães que espalham despreocupadamente as suas pulguinhas negras, alegres e saltitantes, em delicado contraste com a alvura da calçada à portuguesa. Alguém vai, ao cair da noite, servir uma tigela de leite morno aos bichanos do quarteirão? Não. Alguém distribui pelos rafeiros da urbe um osso apetitoso ou uma latinha de «Pedigree»? Pois, também não. Encerrados em asilos municipais, os bichos lá ficam à espera de dias mais livres e risonhos.

O que propunha então, à chefe do executivo (freguesídeo?) era que se alargasse o campo de acção ao flagelo de qualquer cidade tradicional europeia. Pombos, pombos e mais pombos. Esses sim, verdadeiros ratos com asas, seriam dignos de uma «solução final». O difícil está em convencer os reformados que do pão da véspera se podem fazer torradas e alertá-los para os resultados obtidos quando se colocam grãos de milho num tacho. Macias e suaves, doces ou salgadas, as pipocas não constituem certamente ameaça aos implantes e placas tão troisième âge.

Fica, ao menos, o consolo de saber que as crianças não poupam a classe pombídea às massivas fugas-relâmpago nos parques e jardins, e que cada vez mais edifícios adoptam a colocação de uns ferrinhos, pouco estéticos mas muito eficazes, que impedem a permanência desses seres nas varandas, beirais e cantarias.

O mal dos pombos, bem vistas as coisas, é semelhante ao dos chapéus. Há muitos. E pior do que isso, são todos palermas.